A propósito de presos, guardas, reinserção, homens maus e outros não.
Fugir para dentro
Regressa à noite ao pé do muro. Uma caixa de cartão por baixo, um saco cama velho e sujo, e a ele dorme encostado. Há pouco tempo atrás, no portão grande do lado esquerdo, a porta de homem se abriu e Zé Palha sai, um saco de viagem numa mão, e na outra ainda do lado de dentro, a do guarda num cumprimento:
-Agora juízo Zé; e boa sorte!
Regressa à noite ao pé do muro!
Os guardas conhecem-no, cumprimentam-no, trocam frases banais da guarita para o solo. Ex-carrascos de ex-condenado, e o mesmo mundo anos a fio. O mesmo lado!
Mandam-no embora, dão-lhe conselhos alguns, outros já não. O mundo não o entende. Eles sim! Eles entendem, conhecem o Zé Palha desde que lá entraram para fazer a primeira guarda. Famoso, o Zé Palha.
Matara um G.N.R. que lhe andava a "comer" a mulher. Apanhou-os no palheiro, descarregou a caçadeira no "bonito"; nela, faltou-lhe a coragem, ou sobrou amor. Morreu o amante, ele, herdou a prisão e a alcunha. Outros tempos, e a guarda em peso no tribunal, vinte cinco anos de prisão lhe valeu. Ela, em feliz comunhão de bens casada, vendeu a quinta, vendeu os filhos, vendeu o cão e fugiu com outro, este, musico na filarmónica. O GNR era casado.
Na condicional, já contava para aí mais de quinze cumpridos, parece que alguém que era primo de alguém, que até trabalhava não sei a onde, se viu obrigado a amparar a viúva "corna", e agora, a dar uma palavrinha ao juiz. Isto a pedido dos colegas do amante, inocente, e vitima. E o Zé..., o Zé era perigoso, e para o juiz:
-Muito cedo! É muito cedo ainda!
Depois já ele a não queria. E pequenas vigarices lá dentro, que o próprio dava à morte, o iam livrando. E ali mantendo.
Vinte e dois, e mais três meses. Não deu mais! Ingratos! Um pontapé no cu e faz-te à vida!
-E faço o quê? -Perguntou! -Tinha trinta e quatro; tenho cinquenta e seis, quase sete. Faço o quê?
-Não sei Zé! Aqui não podes ficar, isto não é hotel. Procura ajuda nalguma instituição.
-Ah! Do estado?
-Do estado!
-Como esta?
-Como esta não; pá! Isto é uma prisão!
E o Zé foi!
E o Zé tentou! Arrumou carros na avenida, fez recados pagos na praça, juntou cartão para vender, recebeu sopa quente e solidária, até tirou uma foto para o jornal com um tipo lá da câmara.
-Sei lá quem era! Não devia ser importante. Não conseguiu cumprir nada do que prometeu.
Mas adiante.
O Zé voltou!
Cartões por cartões,...e sopa, também lha traziam os amigos que trabalhavam cá fora, nas hortas. Se chovia, dormia na guarita da cancela.
Hoje, do lado de dentro, há mais historias acerca de como aconteceu, do que tipos presos com a alcunha de China. Com quase sessenta anos. Um feito! Mas a verdade, é que foi apanhado a fugir. Perdão! Digo; a entrar!
Em equilíbrio, meio cá, meio lá, e uma pequena mochila nas costas. No rosto um sorriso, na mochila, fotos antigas e meia dúzia de guloseimas. Mais para amigos do que para si.
Mas ó destino; porquê? Porque fazes tu destas coisas? Era um guarda novo. Acabadinho; acabadinho de chegar.
-Sou eu o Zé! Sou eu sô guarda!
-Pára! Pára ou disparo!
-Mas sou eu, o Zé!
Era tarde para o Zé voltar para trás. Era tarde para o Zé parar. E o Zé mexeu-se, ou melhor, sejamos honestos, precipitou-se para dentro. E entendendo ou não, o entendeu depois, o guarda disparou.
-Ele meteu a mão ao bolso! -Afirmava.
E foi verdade, pois dele e ainda a tempo de a deixar cair no chão de terra e ervas, o Zé tirou uma pequena garrafinha de whisky. Prenda para o Pulha, seu grande amigo de,... sei lá, quantos anos já. Que interessa, uma vida, aquela. Com ele, tirando mulher, caso houvesse claro, dividia tudo. Amigo mesmo!
Ficaria ali, a garrafinha, talvez antes do Natal, os tipos da brigada que lá vão cortar as ervas a encontrem. Há-de-se arranjar maneira de entrar! No bolso, uma harmónica para o Cabeças da cozinha. Nova! Toca bem o "cabrão"! Custara-lhe a esmola de uma estrangeira, mas um amigo na cozinha, faz sempre jeito.
Estendido na maca da enfermaria, está o Zé Palha. Está lá dentro! Está morto! E diante dele, acordado à pressa a meio da noite, o faxina da enfermaria, ou seria o ajudante do enfermeiro; dá igual, embora este até parece que o fora cá fora. Enfermeiro; não faxina, e preso também por homicídio, com vinte e três para cumprir, quase todos ainda pela frente, e com ele, um guarda com os mesmos, mais ou menos, de profissão e de casa, comentam:
-Que maneira mais estúpida de morrer! A entrar por vontade própria para a "cana"!
Diz o preso.
-Pelo menos morreu em casa! -Assentou o guarda.
-Se queria ser preso, porque não cometeu um crime. Ora bolas!
-Se calhar, porque era um homem bom e honesto,...não te parece!?
V. D.
03/18